Você pode até não gostar de futebol, mas provavelmente em algum momento da sua vida já leu ou ouviu falar sobre “fair play”, não é mesmo?
A tão propagada expressão “fair play” costuma ser empregada em inúmeras competições esportivas, em especial, no futebol. Em tradução simples, significa o tão almejado “jogo limpo”.
E é nesse espírito do “jogo limpo” que a FIFA organiza suas competições, pune atletas e técnicos que não compartilhem desse ideal, que em sua essência mais primitiva, é sem dúvida alguma, louvável.
Mas, quando se trata de organizar uma edição de Copa do Mundo, o “fair play” é jogado literalmente para escanteio, sendo ignorado justamente por quem deveria zelar pelo desenvolvimento do esporte e reaplicar na ordem global toda a riqueza obtida pela movimentação desse negócio astronômico chamado futebol.
E a esse jogo sujo, a FIFA tem ao longo das décadas contado com o apoio irrestrito de governos locais, em verdadeira parceria nefasta, perpetrando ações nem sempre claras e morais aos olhos dos cegos apaixonados pelo esporte betrão.
Seria cômico se não fosse trágico, mas em minha ingenuidade, eu realmente acreditava que sediar uma edição de Copa do Mundo seria algo de muito bom para o Brasil. Que traria investimentos, criando empregos; que aqueceria a economia em tempos de crise global, além de representar maior conforto aos torcedores que se espremem nos estádios brasileiros em dias de jogo. Isso sem contar outros benefícios de ordem estrutural nas cidades brasileiras que sediariam o evento (transporte, aeroportos, rede hoteleira, paisagismo, segurança).
A esse sopro de esperança, eu incluía minha paixão pelo futebol e pela oportunidade até hoje única de presenciar um evento esportivo desse porte na minha cidade, no meu país, confraternizando com brasileiros de todas as partes do país e conhecendo um pouco da cultura e as pessoas de cada canto do mundo.
Enfim, um sonho que em poucos meses se transformou em pesadelo e motivo de vergonha.
Sediar uma Copa do Mundo talvez fosse a solução ou esperança de dias melhores aos brasileiros em muitos aspectos fundamentais e primários da vida em sociedade.
Talvez fosse assim, se estivéssemos falando de um país sério. Mas, infelizmente, estamos falando do Brasil e de sua já conhecida corja de políticos, dirigentes esportivos e seu povo alienado, ainda em tempos de política do “pão e circo”.
O jogo sujo começou lá atrás, na época de candidatura dos países para sediar a Copa de 2014. Você se lembra de ter lido ou visto em algum lugar a lista de encargos que o Governo Federal se comprometeu a garantir caso o Brasil fosse escolhido? Pois é, então somos dois. O que é de se estranhar, afinal, em uma disputa assim todas as regras são previamente definidas e repassadas aos responsáveis. Se você lê e concorda, você confirma sua inscrição e se sujeita. Caso contrário, você agradece a atenção e inventa para o seu povo uma justificativa qualquer de que um país de terceiro mundo não reúne condições de receber um evento deste tipo.
E a imprensa, por que não divulgou as regras do jogo? Por que não permitiu ao brasileiro o livre arbítrio para decidir se apoiaria ou não a participação do Brasil na disputa pela Copa de 2014? Por que não viabilizou a formação de opinião daqueles que justamente são os principais atingidos pelas decisões tomadas de seus governantes? A quem está interessando isso tudo? Basta dar uma olhada nos sobrenomes de quem estão liderando comitês, ministérios, federações, patrocinadores e empresas no ramo de construção civil, hotelaria e afins envolvidas na organização da Copa do Mundo. São figurinhas conhecidas.
É o que eu costumo dizer, vivemos em plena “ditadura democrática”. O poder e a riqueza concentrados nas mãos de poucos enquanto muitos perdendo a vida por um salário mínimo miserável, incapaz de garantir o mínimo existencial.
Abram alas, esse é o nosso país.
Irônico é perceber que em tempos de informações e documentos obtidos sem maiores dificuldades de inquéritos policiais, em tese, sigilosos, nenhum veículo de comunicação, nenhum jornalista, empresa, fundação ou associação deste país ventilou qual seria o preço e quais seriam as condições que o Brasil precisaria garantir para sediar uma Copa do Mundo.
Venderam-nos o melhor dos mundos. Os estádios seriam todos construídos com o dinheiro da iniciativa privada. Seria uma Copa do Mundo praticamente sem dinheiro público.
E mais uma vez, tudo não passou de jogo político, de promessa de campanha, enfim, de um jogo sujo. “Fair play”, o que é isso?
A realidade hoje é outra. Não sei o número ao certo, mas dos doze estádios que receberão partidas da Copa do Mundo, apenas um ou dois serão reformados com o dinheiro da iniciativa privada. O restante terá a reforma arcada e custeada pelo meu, pelo seu, pelo nosso dinheiro.
Ok, sem problemas. Haverá licitações. Gerará empregos, aquecerá a economia. Em outro país, as chances seriam maiores. Não aqui, nesta pátria de chuteira mal lavada.
Em poucos meses, os projetos de reforma dos estádios simplesmente tiveram seus custos multiplicados e quem está pagando a conta dessa irresponsabilidade somos nós, meus amigos. Com tanto dinheiro escorrendo pelo ralo, há casos de obras paralisadas porque os trabalhadores estão em greve lutando por melhores condições de trabalho e remuneração. Pois é, não basta majorar o valor da obra. Não basta assinar um cheque em branco aos ladrões que gerenciam os projetos. É preciso maltratar os operários, é necessário oferecer salários irrisórios e atentatórios ao princípio da dignidade humana.
Poderia falar do absurdo de se construir estádio para 71 mil pessoas em Brasília (Brasiliense e Gama são as potências futebolísticas da região) ou então de se construir uma arena em Natal (América e ABC são os expoentes do futebol naquela aprazível cidade) ou mesmo em Manaus (onde teremos um verdadeiro elefante branco). Poderia tratar da promiscuidade com que um ex-presidente da república liderou e arquitetou para se construir um estádio de futebol em São Paulo para seu clube do coração com dinheiro público, usufruindo de toda a sua influência, adquirida ao longo de décadas de vida política. Poderia falar dos aeroportos brasileiros, aquém da necessidade de um país como o nosso. Do despreparo com que o setor hoteleiro e outros serviços voltados ao turismo receberão os visitantes do mundo inteiro. Mas, falarei apenas do Rio de Janeiro, da Lei Geral da Copa e do Decreto Presidencial concedendo isenções fiscais até 2015.
A reforma do Maracanã, a terceira grande reforma nos últimos 20 anos, custará algo em torno de 1 bilhão de reais. Isso porque para o Pan de 2007 já foi gasto um valor absurdo sob a alegação de que se estaria deixando o estádio em condições de sediar uma partida de Copa do Mundo. Ainda que os clubes do Rio de Janeiro assumam a administração do estádio depois da Copa (ou então das Olimpíadas), não sei em quanto tempo o Estado vai recuperar (se for recuperar algo, diga-se de passagem) o dinheiro investido, se o custo pela manutenção mensal não inviabilizará sua administração pelos clubes cariocas e se o torcedor que freqüenta o estádio nos campeonatos locais (diferente do torcedor que estará no Maracanã durante a Copa do Mundo) reunirá educação e consciência suficiente para conservação do estádio.
Fico pensando em como 1 bilhão de reais poderiam ser investidos no estado fluminense, principalmente em questões cotidianas. Na melhoria do sistema de transporte, na construção de escolas, verbas em hospitais e universidades, na remuneração melhor de professores, profissionais da saúde, em melhorias no setor de segurança pública, serviços de inteligência da polícia. Digo isso porque para todas essas necessidades, o Estado justifica sua insuficiência pela falta de recursos disponíveis em caixa. Ora, para construir um estádio de futebol superfaturado o dinheiro com certeza não brotou da árvore. O que prova que quando se quer, não há impedimento orçamentário que resista à vontade de se fazer a coisa certa. Se para desviar recursos encontram brechas nos textos legais, com muito menos dificuldades se encontrariam brechas que permitissem uma reviravolta na vida do carioca em seus aspectos fundamentais.
A Copa de 2014 deixará um legado. Mas, não o legado que desejamos, não aquele que poderia ser dado ao brasileiro. O resultado dentro de campo por óbvio vai interessar e ser importante, mas não tanto quanto propiciar uma vida melhor aos brasileiros. No final, seremos os maiores derrotados da Copa do Mundo. E por culpa nossa, absolutamente nossa.
Por sua vez, a FIFA, entidade máxima do futebol mundial, promove ruídos com o Governo Central sobre a Lei da Copa. Em certo ponto, com muita propriedade, afinal, o Governo Brasileiro se comprometeu lá atrás a não criar óbices às condições estabelecidas. Questões de combate à pirataria, à comercialização de produtos licenciados, à venda de cervejas (uma das maiores patrocinadora da FIFA é uma cervejaria), dentre outros aspectos importantes, que ofendem e afrontam a soberania do Estado Brasileiro.
Mas, não menos importante e igualmente revoltante diz respeito ao Decreto 7.578, de 11 de outubro de 2011, que regulamenta as medidas tributárias referentes à realização, no Brasil, da Copa das Confederações FIFA 2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014 de que trata a Lei no 12.350, de 20 de dezembro de 2010.
Quem se interessar, pode conferir o teor do decreto no site http://www.planalto.gov.br/.
De parceiros comerciais da FIFA, passando pela própria entidade máxima do futebol mundial, as confederações dos países participantes, as empresas que trabalharão durante a Copa e tudo que direta ou indiretamente estiver envolvido na organização do evento estarão isentas do recolhimento de tributos federais.
Em outras palavras, toda receita advinda de produtos e serviços realizados com a Copa do Mundo no Brasil estarão livres de tributos. No momento em que o Brasil conseguiria recuperar uma pequena parte do investimento feito para receber uma edição de Copa, nossos governantes se acovardam e se submetem aos desmandos da FIFA.
E a dona FIFA, por sua vez, possuidora de bens e de muita riqueza, precisaria mesmo exigir tudo isso dos países-sedes? Por que tanta ganância? Por que não querer compartilhar com o mundo a riqueza obtida com o futebol? Mesmo não havendo mais espaço para guardar tanto dinheiro em contas suíças ou paraísos fiscais, a FIFA, sob a bandeira do “fair play”, pratica um jogo sujo com seus filiados, com os apaixonados pelo futebol. Sim, futebol é um negócio, mas não deveria haver preço no mundo que fizesse alguém vender sua alma ao diabo.
Fato é que a balança está pesando demasiadamente para um lado da relação. E enquanto isso acontece, continuamos sendo manipulados pela mídia, que insiste em vender o sonho da Copa do Mundo perfeita no Brasil. A que preço? Sob quais circunstâncias? Os fins justificam os meios? Valerá a pena? Será com “muito orgulho e com muito amor” que você cantará nos estádios que é brasileiro?
Como se vê, neste caso, a regra do jogo está longe de ser clara.
A FIFA e o Governo Brasileiro, juntos, ignoram as regras mais elementares do “fair play”. E o pior: gozam da complacência e manipulação da imprensa e abusam da alienação da população.
Pode isso, Arnaldo?